quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um monumento de ignomínia por VASCO GRAÇA MOURA

Um monumento de ignomínia

por VASCO GRAÇA MOURA, DN 2010-10-06

A Primeira República portuguesa foi um monumento de ignomínia. As comemorações em curso não podem escamotear esse facto e deveriam proporcionar aos portugueses uma visão altamente crítica desse período da nossa história. Historiadores como Vasco Pulido Valente e Rui Ramos já o têm feito e bem. Mas nunca será demais insistir.

Tem sido frequentemente observado que, na monarquia constitucional, o liberalismo foi abrindo a porta a uma dimensão republicana. De facto assim foi. A partir da estabilização ocorrida em meados do século XIX, viveu-se em Portugal uma era "republicana" de tolerância e de fruição das liberdades que só havia de extinguir-se pela força em 1910. Isto, apesar de todos os problemas que o constitucionalismo português foi tendo, da fragilidade do Estado e das suas instituições a uma catadupa de situações escandalosas e insustentáveis, passando por políticas erráticas, incompetentes e contraditórias, crises políticas e sociais, buracos financeiros insolúveis, corrupção, tráfico de influências, caciquismo, analfabetismo, atraso crónico e generalizado face à Europa e outras maleitas graves.

A monarquia constitucional acabou por cair de podre. Afundou-se no fracasso geral das instituições e no desprestígio mais completo dos partidos. Perdeu o pé no entrechocar das rivalidades, despeitos, ajustes de contas e interesses inconfessáveis dos grandes figurões de um regime em que os republicanos já se encontravam instalados por "osmose" pacífica havia muito, enquanto a tropa, quando não conspirava, ia assobiando para o lado. Tudo isso foi assim. Mas nunca a monarquia constitucional em seis décadas cometeu crimes comparáveis aos que a República praticou em meia dúzia de anos.

As comemorações do centenário da República têm de falar desses crimes. Eles foram cometidos sob a batuta de uma das figuras mais sinistras da nossa história. Graças a Afonso Costa e aos seus apaniguados organizados em milícias de malfeitores, a Primeira República, activamente respaldada pela Carbonária (e, mais tarde, por uma confraria de assassinos chamada Formiga Branca), nunca recuou ante a violência, a tortura, o derramamento de sangue e o homicídio puro e simples. Instaurou friamente entre nós o pragmatismo do crime. Institucionalizou a fraude, a manipulação e a batota generalizadas em todos os planos da vida portuguesa. Manipulou e restringiu o sufrágio, excluindo dele os analfabetos, as mulheres e os padres. Perpetrou fraudes eleitorais sempre que pôde. Perseguiu da maneira mais radical e intolerante o clero católico, por vezes até ao espancamento e à morte. Levantou toda a espécie de obstáculos ao culto religioso e à liberdade de consciência. Cometeu as mais incríveis violências contra as pessoas. Apropriou-se do Estado, transformando-o em coutada pessoal do Partido Republicano Português…

Em 1915, Portugal deve ter sido um dos pioneiros na defesa do genocídio moderno. Na campanha militar que se desenrolava no Sul de Angola, as atrocidades são de pôr os cabelos em pé. Nas Actas das Sessões Secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da República sobre a participação de Portugal na I Grande Guerra (ed. coordenada por Ana Mira, Lisboa, AR e Afrontamento, 2002), encontra-se o depoimento de um militar, segundo o qual "temos ordem para matar todo o gentio desde dez anos para cima" (p. 151). E os outros depoimentos testemunhais, ali reunidos de pp. 148 a 153, ilustram macabramente essa afirmação. Confrontado com esta situação no Parlamento, Afonso Costa foi peremptório: "Não nos deixemos mover por idealismos nem esqueçamos o conceito e impressão dos pretos perante respeitos humanitários que ele [orador] considera como fraqueza ou pusilanimidade" (op. cit., p. 115), ao que Brito Camacho respondeu que "civilizar com a navalha e a carabina não é humanitário nem científico. As chamadas raças inferiores são apenas raças atrasadas; não é possível civilizá-las, exterminando-as" (ibid., p. 117).

No momento em que escrevo, antevéspera da famigerada efeméride, não sei ainda o que é que o jacobinismo irresponsável de uns, a complacência timorata de outros e a versatilidade diplomática de muitos virão a dizer nas cerimónias oficiais. Mas como se corre o risco de estas coisas não serem publicamente referidas, aqui fica mais uma síntese muito incompleta delas, para que conste. Cumpro desta maneira a minha obrigação de republicano.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Um texto de Vasco Pulido valente sobre os 100 anos da República

Comemorações da República

Por Vasco Pulido Valente


A República foi feita pela chamada "geração de 90" (1890), a chamada "geração doUltimatum", educada pelo "caso Dreyfus" e, depois, pela radicalização da República Francesa de Waldeck-Rousseau, de Combes e do "Bloc des Gauches" (que, de resto, só acabou em 1909). Estes beneméritos (Afonso Costa, António José d"Almeida, França Borges e outros companheiros de caminho) escolheram deliberadamente a violência para liquidar a Monarquia. O Mundo, órgão oficioso do jacobinismo indígena, explicava: "Partidos como o republicano precisam de violência", porque sem violência e "uma perseguição acintosa e clamorosa" não se cria "o ambiente indispensável à conquista do poder". Na fase final (1903-1910), o republicanismo, no seu princípio e na sua natureza, não passou da violência, que a vitória do "5 de Outubro" generalizou a todo o país.

Não admira que a República nunca se tenha conseguido consolidar. De facto, nunca chegou a ser um regime. Era um "estado de coisas", regularmente interrompido por golpes militares, insurreições de massa e uma verdadeira guerra civil. Em pouco mais de 15 anos morreu muita gente: em combate, executada na praça pública pelo "povo" em fúria ou assassinada por quadrilhas partidárias, como em 1921 o primeiro-ministro António Granjo, pela quadrilha do "Dente de Ouro". O número de presos políticos, que raramente ficou por menos de um milhar, subiu em alguns momentos a mais de 3000. Como dizia Salazar, "simultânea ou sucessivamente" meio Portugal acabou por ir parar às democráticas cadeias da República, a maior parte das vezes sem saber porquê.

E , em 2010, a questão é esta: como é possível pedir aos partidos de uma democracia liberal que festejem uma ditadura terrorista em que reinavam "carbonários", vigilantes de vário género e pêlo e a "formiga branca" do jacobinismo? Como é possível pedir a uma cultura política assente nos "direitos do homem e do cidadão" que preste homenagem oficial a uma cultura política que perseguia sem escrúpulos uma vasta e indeterminada multidão de "suspeitos" (anarquistas, anarco-sindicalistas, monárquicos, moderados e por aí fora)? Como é possível ao Estado da tolerância e da aceitação do "outro" mostrar agora o seu respeito por uma ideologia cuja essência era a erradicação do catolicismo? E, principalmente, como é possível ignorar que a Monarquia, apesar da sua decadência e da sua inoperância, fora um regime bem mais livre e legalista do que a grosseira cópia do pior radicalismo francês, que o "5 de Outubro" trouxe a Portugal?

(Adaptação do prefácio à 6.ª edição do meu livro O Poder e o Povo).

Público, 2 de Outubro de 2010