Capítulo 10. Uma tentativa de figurino nacional
O espectro político e económico de Portugal entra em crises profundas, que passam pela afronta do Ultimato britânico sobre os nossos territórios da Niassalândia (1890), como consequência da Conferência de Berlim de 1888 “(…) em 1890-93 é o fim. O ultimatum põe em causa o posicionamento tradicional de Portugal e leva a uma perda de credibilidade não só do governo, que em grande medida o provoca, mas do próprio regime. O modelo político logo se desmorona, com uma tendência para o fortalecimento dos extremos, uma perda de credibilidade dos partidos rotativos, o desenvolvimento de novas formas de luta política e o renascer do golpismo militar [31 de Janeiro de 1891], depois de quarenta anos de intervalo. O modelo económico, por seu lado, não aguenta a queda das remessas dos emigrantes, a alteração do sistema económico internacional e a crise financeira geral. (…) o crescimento de uma indústria virada para o mercado interno e para o Império, sem competitividade internacional.”(Telo, 1994, p. 63 - 64).
As crises despoletadas põem em risco a própria monarquia, que entra no seu declínio. Os ministérios, impotentes perante o monstro inglês, cedem perante violentas reacções internas por parte dos meios políticos republicanos, onde já se integravam todas as componentes sociais, incluindo militares. Daí o golpe de 31 de Janeiro de 1891, sufocado pela Guarda Municipal do Porto: “É sabido que o ultimatum britânico de 1890 e a revolta republicana de 1891 se acham indissoluvelmente ligados. Não escasseiam as fontes a comprovarem-no e não têm faltado os estudos a soldarem o elo, sobretudo na esfera política e militar” (“A Revolução de 31 de Janeiro de 1891”, 1991, p. 11) e que marca o retorno do já referido golpismo. Só o despoletar das campanhas de pacificação em Moçambique (1894) contra os régulos revoltosos vai acalmar e ofuscar as intentonas republicanas, mercê da imagem e dos exorcismos da afronta inglesa protagonizados pelo corpo de oficiais expedicionários, com ressalva para a figura do capitão Mouzinho de Albuquerque (“Exposição Histórico-militar em homenagem a Mouzinho de Albuquerque no 1º centenário do seu nascimento”, Porto, 1957).
O contexto geral europeu desenrolava-se agora sob os auspícios da Conferência de Berlim (1888), onde todos os países presentes, entre os quais Portugal, estabeleceram novas regras quanto aos domínios e à conservação de possessões coloniais. A capacidade de ocupação militar sobrepunha-se então aos direitos históricos (com prejuízo para Portugal face ao expansionismo britânico e aos gulosos olhos do governador dos domínios ingleses na África Austral, Cecil Rhodes). Só com inauditos esforços diplomáticos os pequenos países conseguem manter as suas fatias ultramarinas e outras nações, sem tradição colonial, lançam-se nessa aventura para marcar o seu lugar, como o fez a Itália que se lança no Norte de África, na Eritreia e na Abissínia.
Este período é de facto recheado de guerras coloniais sucessivas e sobrepostas. Wolseley esmaga os egípcios em 1882, Kitchener toma Khartoum em 1898 e entra em operações contra os Boers. A Itália sonha em ocupar Tunes e aponta os mapas para a África Oriental (Eritreia, Somália e Etiópia), com os desastrosos resultados militares de Adwa em 1896. No Extremo Oriente, um novo actor surge, o Japão, com uma nova e poderosa máquina militar que se vira para a Manchúria e para a Coreia, sem esquecer o Pacífico (Schnerb, 1983, p. 213 - 235).
A uniformologia dos exércitos europeus continuava a sua evolução no sentido da simplicidade prática, logo, eficaz. Os uniformes vistosos e coloridos remetiam-se para corpos cerimoniais (guardas reais na maioria), começando a surgir os fardamentos no seu sentido actual, onde pontuava o khaki inglês ou o feldblau germânico, com excepção do azul e escarlate franceses, ou do nosso plano de 1892 que, apesar das ambições de economia, fez as tropas, principalmente caçadores e infantaria, sofrerem um retrocesso estilístico em relação ao figurino prussiano. Estes fins do século XIX representam o adeus à cor nos exércitos europeus e americanos. As grandes potências iniciaram a adopção de uniformes monocromáticos, como por exemplo a Alemanha, cujas tropas mantêm fardamentos de feitios e dimensões tradicionais, como os hussardos, os uhlans (lanceiros) ou os jägers (caçadores de montanha), mas em tecidos feldblau, onde sobressaíam os vivos de cor encarnada ou de outros tons mais vivos (Nicholson, 1973, p. 13). No caso inglês, a década de 1890 via o seu exército ter dois tipos de uniformes, um colorido (com túnica escarlate) e um mais simples (pequeno uniforme) com confecção em tecido khaki. Nas grandes paradas, o exército vitoriano desta época continuava a desfilar em toda a sua glória, com casacos vermelhos e acessórios dourados e prateados, barretinas de pêlo de urso (Coldstream Guards, The Scottish and Irish Guards, etc.), capacetes de dragão e couraceiro, etc. (Laver, 1965, p. 140). O exército austríaco também começa a “escurecer” os seus uniformes de campanha em direcção ao feldblau (azul médio / escuro), deixando os seus exuberantes uniformes para as grandes ocasiões, que não eram poucas, sobretudo com a presença do imperador. O soldado de infantaria austríaco deixa de usar as suas veneráveis túnicas brancas, vendo-as substituídas por casacos azuis (o uniforme branco fica reservado para o imperador e para os oficiais generais) e calças cinza-azulado, com barretina de couro negro. As tropas húngaras (Honved) diferiam somente nas calças, azuis médio, e extremamente justas.
Os jäger fardavam-se de cinza claro, assim como a infantaria da Landwehr (tropas territoriais). As unidades distinguiam-se pela cor das golas, platinas e parolis (quadrados de tecido colorido que se aplicavam na golas) para além de outros paramentos uniformológicos. A cavalaria era mais exuberante, usando e abusando dos azuis-celeste. A Rússia segue esta linha em termos uniformológicos muito representativos de exércitos ligados a regimes conservadores, nos quais a exuberância marcial era símbolo de poder, centralizado no Kaiser, Emperor ou Czar (Mollo, 1972, p. 209 - 213).
É dentro deste panorama que surge a O.E. nº 25 de 12 de Setembro de 1892, contendo um plano de uniformes cujo resumo de intenções se pode captar no texto de abertura: “Sendo conveniente reunir em um só diploma todas as disposições que têem modificado o plano de uniformes para o exército, approvado por decreto de 1 de Outubro de 1885 e bem assim introduzir no referido plano várias alterações propostas pelos generaes commandantes e inspectores geraes das armas e chefes de serviços, as quaes têem sido aconselhadas pela prática ou foram impostas pela adopção dos novos padrões de lanifícios, hei por bem approvar e mandar pôr em execução o plano de uniformes para o exército que faz parte do presente decreto e baixa assignado pelo ministro e secretario de estado dos negocios da guerra.” Por aqui vemos a sumarização de todos os decretos que se seguiram ao plano de 1885 e por nós analisados. Os pontos mais importantes, ao longo de sete anos, traduziram-se na abolição do casaco e redefinição da jaqueta para um novo modelo mais longo, que acumulava as funções inerentes ao grande e ao pequeno uniforme pela aplicação e remoção de granadeiras sobre as platinas, já que os antigos macarrões haviam sido também abolidos.
Devido a questões de qualidade, o pano cor de pinhão é abolido da infantaria e de caçadores voltando-se ao tradicional azul ferrete. O próprio pano de mescla preta que servia para calças e capotes é substituído por mescla azul clara para o primeiro caso e por mescla azul escura para o segundo. Esta situação é algo paradoxal, porque se se aboliu o casaco por questões económicas, dado o pouco uso daquela peça o que não justificaria a sua existência, então porque se prescinde de um pano único para duas peças de fardamento, ao fim de muitos anos de tradição neste aspecto? Carecendo de confirmação documental, levantam-se contudo algumas hipóteses, sendo a primeira a de que o novo pano azul claro para calças seria muito mais aligeirado do que o antigo padrão, reservando-se uma gama de mescla mais pesada (azul-escura) para capotes. A segunda hipótese reside na eventual má qualidade dos tecidos usados anteriormente a esta medida, simultaneamente com o pano cor de pinhão fornecido desde 1885, ligando-se aqui uma terceira hipótese baseada em novos contratos de fornecimentos de lanifícios à base de tinturarias azuis (indigos ou anil), o que nos parece uma base sólida para um futuro trabalho ou debate sobre a estrutura, evolução e gestão dos lanifícios e contratos de fornecimento destes ao Exército.
Em termos de figurinos, desde 1886 que a indefinição pairou sobre a manifesta introdução de caracteres prussianos em uniformes do Exército. Toda a estrutura desse plano se foi desarticulando da intenção original, acabando por restar o capacete de pico como característica e elo de ligação a esse figurino. Situação esta que acabaria também por ser alterada com a supressão do capacete na espinha dorsal do Exército (infantaria e caçadores). Como Arma mais numerosa, era talvez a mais atingida pelas pressões económicas para se poder sustentar a operacionalidade de serviços mais dispendiosos como o de artilharia, tanto à custa da aquisição e manutenção de materiais modernos, como com a necessidade do respectivo municiamento. Também a cavalaria exigia fundos para a manutenção do seu parque equestre. Mesmo a própria engenharia militar, gozando de um elevado estatuto, devido ao seu próprio corpo de oficiais (que alimentavam uma boa parte do corpo docente das escolas especializadas do país), necessitava de apoio financeiro para a manutenção da rede telegráfica, das ferrovias militares e do serviço de fortificações.
Se em 1885 a infantaria de linha que, desde 1764 se fardava no azul ferrete tradicional, se submete a uma fusão cromática com os corpos de caçadores, ficando os dois corpos uniformizados em castanho pinhão, em 1892 vai suceder o inverso, é o azul ferrete que se torna a cor geral dessas tropas, quebrando uma tradição que vinha já da Guerra Peninsular e retirando um certo estatuto de elite aos caçadores.
De acordo com o que afirmava Satúrio Pires na sua história dos “Uniformes dos Corpos de Caçadores” (Lisboa, 1935), verificou-se mais uma alteração estilística e um pouco inesperada: “Se em 1868-9 o nosso exército se tinha fardado á franceza, se em 1885 o figurino escolhido fora, em parte, o allemão, agora em 1892, é a barretina italiana e a giuba italiana que, com o azul ferrete dos dolmans, e as mescla de tom azul claro das calças e calções, serão as características da nossa infantaria e caçadores. O porquê da adopção de estilos meridionais especificamente italianos, segundo este autor, é especulativo e carente de confirmação oficial. Isso nos leva a encarar somente hipóteses mas que cremos terem surgido a partir de um certo revanchismo anti-britânico devido ao ultimato. Se a economia de meios ditou o fim do capacete de feltro (de pouca durabilidade) e permitiu a continuidade dos stocks de capacetes de couro para engenharia, artilharia e cavalaria, porque não se voltou ao képi francês de 1868-69?
Apesar da França permanecer uma potência militar, já não ditava figurinos militares, para além de ser uma República laica. Num período de anticlericalismo, era um exemplo pouco edificante para adoptar numa monarquia como a portuguesa, que apesar de liberal, era ainda um garante do catolicismo de Estado. O retorno ao figurino inglês, em parte com similaridades ao prussiano desde 1879 (também usavam pickelhaube, embora com características próprias), estava fora de causa por razões globais. A opção de buscar influências na parte meridional da Europa, concretamente a Itália, parece reflectir uma bipolarização entre os ricos países do Norte, gigantes industriais e coloniais e os países mais pobres do Sul, ricos em tradição histórica e com passados gloriosos, mas agora atrasados industrial e economicamente. A estrutura militar italiana é pouco conhecida, só sobressaindo os lendários bersaglieri e voluntários garibaldinos, pioneiros da independência e unificação italiana. Contudo, é de crer que existissem similaridades estruturais entre o Exército Português e o Italiano, principalmente ao nível da exiguidade de meios militares e económicos para, no primeiro caso, manter um império e no segundo criá-lo. Assim parece ter existido um espírito solidário e romântico, ao adoptar-se o estilo de um país geograficamente próximo, que com falta de meios se procurava afirmar na Europa, à sombra do poderoso império austro-húngaro, tal como Portugal tentava sobreviver aos abusos do seu velho aliado britânico e à proximidade fronteiriça com o gigante espanhol.
Continuando a seguir o texto de Satúrio Pires, a nível das inovações, verificamos que o dolman de oficial, tendo-lhe sido suprimidos os alamares, passa a ser assertoado amplamente sobre o peito, com duas fileiras de oito botões, ganhando a denominação de bacalhau, dado essas fileiras estreitarem em direcção à cintura. Esse dolman serviria para todo o serviço, grande e pequeno uniforme, ordem de marcha, etc.. Só para serviços internos de quartel irá ser introduzido um dolman leve de flanela, com os distintivos de patente nas platinas dos ombros.
Os sargentos e cabos de infantaria e caçadores passarão a ter divisas pretas avivadas de azul claro (em 1885 esta ordem inverter-se-ia, afim de aumentar a visibilidade). Para proteger a nova barretina adopta-se uma cobertura de tecido impermeabilizado branco com cobertura para o sol, usando-se com o penacho removido.
Generaliza-se o uso de um novo modelo de calção para oficiais, sargentos e praças, padronizando o uso da bota ou do botim por fora.
O conjunto de jaquetão e calça de brim é autorizado para tropas em manobras e exercícios (Pires, 1935, folha nº 134).
O plano de uniformes de 1892 (O.E. nº 25/9/1892), tal como o de 1885, abre com uma longa série de disposições gerais, regulamentadoras das normas de manufactura dos artigos de fardamento. Assim, a partir do artigo 3º definiram-se os padrões de lanifícios para os novos uniformes.
Para dolmans, jaquetas-dolman e barretes da classe de sargentos de todas as Armas era destinado um tipo de pano azul ferrete (um designado padrão nº 1 a fornecer pelo arsenal) intermédio entre um tecido mais fraco para praças e outro superior para oficiais. Para as calças e calções dos mesmos, o novo padrão de mescla azul claro. Os restantes elementos do corpo de praças teriam fardamentos confeccionados com o já mencionado pano azul de inferior qualidade (padrão nº 20), assim como a mescla azul claro para calças e calções. A nível geral, o tecido para capotes, abandonada a mescla preta de 1885, passa a ser oficialmente a mescla azul escura.
Outros tipos de pano destinavam-se a acessórios do uniforme. Um pano azul claro (padrão nº 44) destinava-se a vivos e divisas de caçadores, companhias de administração militar e alunos da escola do exército. Pano preto (padrão nº 42) para guarnições e granadeiras dos uniformes das praças de engenharia, artilharia, infantaria, caçadores e companhias de administração militar. Pano carmesim para guarnições de infantaria e pano encarnado para guarnições e vivos das tropas de engenharia, artilharia e cavalaria. O pano branco reservava-se para o uniforme das praças reformadas.
Toda esta massa de lanifícios era gerida e entregue aos arsenais regimentais pela direcção geral de administração militar, intermediário directo com os contratadores de lanifícios, após aprovação pelas comissões gerais de fardamento.
As distinções entre unidades continuavam a ser realizadas pelas cores das guarnições, por números e emblemas (O.E. nº 25 de 12/9/1892, título I, capítulo I, p. 630 - 631).
Algumas determinações e regras continuavam a ser similares ao decretado no plano de uniformes de 1885, como nos artigos 5º a 7º que elucidavam sobre as medidas, dimensões e feitios das calças e calções dos diferentes postos hierárquicos, assim como as medidas e a configuração das golas dos casacos, dolmans e jaquetas.
Os emblemas são redefinidos, primeiramente nos materiais: para os sargentos e praças os emblemas e números regimentais seriam recortados em metal amarelo, excepto em lanceiros, onde seria utilizado metal branco. Seguia-se a descrição da emblemática e respectiva configuração a aplicar nas golas dos casacos e dolmans dos oficiais, sargentos e praças, também seguindo o ainda válido decreto de 1885.
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