sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Uniformologia Militar Portuguesa.5

Capítulo 5. A pacificação interna e do Exército.

A constante agitação militar e política em Portugal, aliada à sempre eterna crise económica, não permitira grandes inovações em termos uniformológicos, e mesmo com o novo plano de uniformes de 1848, ainda não se verificaria a introdução da túnica ou do casaco, peças de uso prático e recém chegadas às modas militares europeias.
Este plano de uniformes, decretado em 5 de Outubro de 1848, não realizou evoluções estilísticas significantes ao nível de algumas potências europeias, que introduziram novos conceitos uniformológicos, baseados sobretudo no pragmatismo.
Ao analisar-se a iconografia relativa a este plano de uniformes, detecta-se uma evidente simplificação do uniforme básico, mantendo-se, contudo, peças obsoletas como a farda, ou casaca de abas. Por esta época, a casaca de abas passara a uniforme de parada em alguns exércitos europeus, como o francês.
A imposição de padrões de disciplina surge subliminarmente nesta simplificação e padronização relativa dos fardamentos, reaproximando o exército à sua missão de defesa e procurando a sua submissão aos governos e poderes legítimos do Reino, embora tal fosse uma tarefa difícil. A farda teria de deixar de ser um símbolo de ambientes políticos explosivos, para passar a ser uma peça de uniforme de um exército pacificado.
A economia surge aqui como um dos factores mais importantes para a concepção do plano de uniformes de 1848 que, perante a leitura dos sucessivos artigos, aponta para a simplificação dos desenhos e do corte do anterior plano de 1834, mas sem concessões aos novos estilos europeus. Estilisticamente, o panorama uniformológico de Portugal e Inglaterra era similar e atrasado em relação à França, à Prússia e aos estados italianos como a Sardenha, o Piemonte, Nápoles e os inconfundíveis voluntários garibaldinos. Mas é importante também referir que outras potências, como a Rússia e a Espanha, continuavam a manter fardamentos de recorte obsoleto, não abandonando uma certa aparência de Antigo Regime.
O factor económico, no plano de 1848, denotou-se no abandono da dupla abotoadura, ou assertoado, similar ao modelo prussiano de 1815 a 1842, passando a um padrão de fila única e direita de oito botões na frente, fazendo relembrar o uniforme básico de 1806. Isto implicou uma significativa poupança em metal e despesas de punções em botões, e mesmo em tecidos, já que a farda deixou de se trespassar sobre o peito. Este trespasse manteve-se nas sobrecasacas do pequeno uniforme dos oficiais e nas versões triplas dos uniformes de caçadores. Mas à parte estas pequenas modificações, a farda, ou casaca de abas, mantinha o recorte obsoleto do plano anterior, datado de 1834.
Um elemento foi substituído com um toque de evolução e modernidade: a barretina. O modelo pesado, dispendioso e pouco cómodo da barretina de topo de sino (Bell-Toped) de 1834, deu lugar a uma cobertura mais ligeira, com similaridades ao modelo francês de 1845. Esta barretina era de formato troncónico, com a parte frontal colocada a 90º em relação ao crânio, dentro do estilo que irá evoluir para o képi, do qual Portugal se tornará usuário a partir de 1868 - 1869.
Um dos aspectos mais frequentes neste período foi a publicação de decretos em que se apontavam as contínuas faltas de disciplina e os sintomas de desleixo patentes em todos os graus hierárquicos do Exército. Criticou-se, sobretudo, a classe de oficiais, incluindo superiores, tanto pelas alterações caprichosas que faziam nos uniformes regulamentares, como por terem os seus fardamentos em mau estado e por se uniformizarem somente para os actos de serviço, fazendo a sua vida social em trajos civis. Esta situação poderia levar-nos a uma série de leituras e de questões pertinentes, passando todas por uma aparente aversão dos militares portugueses ao uniforme, em particular ao dos oficiais, cujo atavio era suposto ser exemplar. Poder-se-ia depreender que muitos oficiais, alistados nas guerras civis e posteriormente, teriam seguido a carreira das armas por necessidade ou imposição familiar, tal como muitos outros, filhos de famílias de vários estratos sociais, ingressavam na carreira eclesiástica como meio de posicionamento social e económico, mas uns e outros sem real vocação ou apego aos objectivos destas profissões.
De facto, pela leitura dos documentos, não seria difícil observar um comportamento de funcionário de repartição na classe de oficiais do exército, largando o uniforme após as horas de serviço, além das acusações de gastarem os seus proventos em vestuário civil, ao invés de o usarem na manutenção e actualização dos seus uniformes. Esta situação era mais rara nas restantes classes, sargentos e praças, devido aos regulamentos mais coercivos sobre o uso de uniforme e aos magros soldos, muitas vezes dizimados a repor peças de fardamento, precocemente desgastadas pela sua má qualidade. Mais tarde, surgirão legislaturas no sentido de interditar o uso do trajo civil aos militares, dentro e fora da unidade, salvo em condições especiais como licenças prolongadas. Desde Abril de 1810 a Outubro de 1848 são emitidas trinta e uma ordens do exército sobre o uso correcto dos uniformes em todos os graus hierárquicos. Numa época preenchida por guerras civis, golpes e contra golpes, instabilidade política e militar, a disciplina e a uniformidade militar não saíram, certamente, beneficiadas. Daí a constante insistência quanto a estes factos, obrigando o Estado e os altos comandos militares a imporem-se sobre as questões disciplinares e sobre o correcto atavio dos uniformes no Exército, independentemente dos graus hierárquicos.
No ponto nº 7 do artigo XXI, da Ordem do Exército nº 50 de 2 de Outubro de 1848, verificamos que se insiste na disciplina da uniformização do vestuário militar dos próprios oficiais. Isto implicava o corte com possíveis extravagâncias ou liberdades tomadas anteriormente, durante os anos conturbados da instabilidade política. É de notar o que foi decretado, muito antes, na ordem do Exército de 4 de Março de 1811: “O sr. Marechal observa, que apesar da ordem do dia 12 de Abril de 1810, os officiaes se vestem de todos os modos, conforme deseja a sua fantasia: s. exª não vê uniformidade alguma (…)”.
Muito mais tarde, a 7 de Junho de 1851 sai um decreto em que o Comandante em Chefe do Exército, Marechal Duque de Saldanha, adverte a classe de brigadeiros quanto ao incorrecto uso de uniformes não correspondendo a esse grau hierárquico. No caso específico, é referido que brigadeiros graduados tinham o hábito de envergar uniformes de general, quando se apresentavam em formatura com as respectivas unidades. Como é natural, tal atentava contra todos os esforços de disciplinar o exército, esforços desenvolvidos desde há longos anos, traduzidos em muitas ordens do exército e decretos a apontarem para que cada classe hierárquica se confinasse aos seus devidos uniformes, como também aos acessórios e paramentos regulamentares. Claro que as milícias e posteriormente os batalhões e guardas nacionais tentavam fugir a este tipo de imposições, usando do poder económico de muitos dos seus elementos para se uniformizarem de maneiras extravagantes ou, pelo menos, para se subtraírem às regras vestimentárias do exército de linha.
Este assunto voltaria a ser tratado em decreto de 3 de Fevereiro de 1852 na Ordem do Exército nº 12. Nela aborda-se o abuso praticado pelos oficiais do Exército em relação ao uso do traje civil que havia sido regulamentado no longínquo ano de 1819, na Ordem do Dia de 16 de Março. Este desleixo e desapego pelo uniforme, com consequente impacto na disciplina, serviria de exemplo negativo em todos os graus hierárquicos até à classe de praças. Citando alguns pontos eloquentes nesta O.E. nº 12: “Que muitos oficiais do Exercito deixem de ter o completo dos seus uniformes, ou o têem em mau estado, para comprarem e trajarem objectos de uso à paisana.
Que quasi se envergonham de apparecer com os distintivos de sua profissão, por isso que sómente nos actos puramente de serviço é que vestem os seus respectivos uniformes. Que são multiplicadas as pertenções de adiantamento de dinheiro para a compra de uniformes; allegando ora o disposto na Ordem de Exército nº 31 de 1849, ora carência dos meios sufficientes e em os cazos são sempre vistos, fora do serviço com vestuário à paisana.” (O.E. nº 12 de 3/2/1852).
A regulamentação de 3 de Fevereiro de 1852 visava, em suma, exercer um controlo sobre os hábitos de muitos militares trajarem à civil, em alturas consideradas impróprias e lesivas para a imagem do Exército perante a sociedade da época. Eram os militares, sobretudos oficiais, compelidos a reservar o traje civil para ocasiões sociais limitadas e fora dos postos de aquartelamento: “passeios ou divertimento campestre…, bailes de subscrição…” (O.E. nº 12 de 3/2/1852).
Em artigo da Revista Militar, no tomo III, do ano de 1852, mencionava-se a Ordem do Exército nº 12, datada de 1850, que já na altura proibia o uso de vestuário civil pelos militares, citando-se como exemplo a Prússia, onde os oficiais não poderiam entrar no Parlamento sem estarem uniformizados. A leitura do artigo deixa transparecer casos de negligência e de falta de atavio militar: “O despreso das insígnias é o despreso da profissão”. Isto implicava falta de disciplina nos quadros de comando e quiçá falta de motivação a vários níveis da instituição militar (Revista Militar, 1852, p. 92 - 93).
Para além destas questões de base que afectavam o exército regular, havia ainda a considerar a lentidão com que era implantado um plano de uniformes, mesmo em forças de segunda linha.

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