quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Uniformologia Militar Portuguesa.6

Capítulo 6. A transição para a Regeneração
No ano de 1852, em pleno início da Regeneração, num novo tipo de regime que pretendia solidificar a figura do Estado, havia que obrigatoriamente reestruturar a força armada da Nação e ao mesmo tempo refazer a sua imagem: criar um exército pequeno, contudo disciplinado e equipado, marcando a distância com a sociedade civil, destinado primeiro à defesa e só depois ao policiamento interno. Contudo não se podia levar a cabo tal projecto sem atentar às exauridas finanças nacionais e aos limitados orçamentos militares, mesmo implicando questões aparentemente pacíficas como a aparência das tropas. O plano de uniformes de 1848, com a aquisição dos novos fardamentos para substituir os dos modelos de 1834, implicava uma série de novas despesas que muitos militares, mesmo oficiais abastados, não estariam dispostos a fazer de imediato. Aliada à ausência de moral e sentido profissional, a transição e modificação da aparência do soldado era ainda mais lenta, sobretudo se as oficinas e os abastecimentos de tecidos e materiais não satisfizessem atempadamente as necessidades dos arsenais.
Esta situação havia sido comentada em 1849 numa crónica interna da Revista Militar (1849, p. 115 - 116) em que, no dia 2 de Janeiro daquele ano, na parada de honra à sessão de abertura das cortes, se fez notar que algumas unidades de 1ª linha, não especificadas no texto, se apresentaram em pequeno uniforme, alegadamente devido às demoras na distribuição dos novos fardamentos. A crítica surge motivada pela solenidade do acto, assim como pela presença de entidades estrangeiras, o que afectava a imagem do Estado, principalmente pouco após o trauma da guerra de 1846. Nesse artigo sugeria-se que só deveriam ter comparecido as unidades já devidamente uniformizadas segundo o plano de 1848.
O período entre 1850 e 1852 destacou-se, sobretudo, pelas extensas modificações e alterações ao plano de 1848, demonstrando a incapacidade das comissões encarregadas de elaborar as legislaturas sobre uniformes em redigir um texto definitivo e coerente. Era assim dificultada a sua aplicação, criavam-se vazios legislativos que obrigavam a decretos a posteriori, com funções complementares. Tal poderia justificar a onda legislativa sobre uniformes, com o seu auge em 1852, já na vigência dos gabinetes regeneradores, deixando a sua presença no plano de 1848.
Após os períodos conturbados de 1848 em que a Europa se viu afectada por crises político-militares e sócio-económicas, às quais Portugal não ficou alheio, fosse pela Guerra da Patuleia de 1846 - 1847, fosse pelos processos políticos que antecederam a Regeneração (1851), seguiu-se um período de relativa paz europeia à excepção da Guerra da Crimeia de 1852 -1854.
É nesse contexto de relativa acalmia política que se decreta o plano de uniformes de 1856, após a existência agitada dos fardamentos do plano de 1848, constantemente sujeitos a modificações e alterações, como sucedeu em 1850, 1851 e 1852.
Desta vez, este plano de uniformes não surge de um só decreto, mas foi dividido em várias partes, cada uma delas respeitando a diferentes Armas e serviços. Pode-se afirmar que foi um plano bastante pormenorizado, tanto no plano descritivo como no plano esquemático, embora não apresente figuras de corpo inteiro de soldados e oficiais em fardamento completo, como havia sucedido em 1834 e 1848.
Além do casaco, surge um novo calçado para infantaria, baseado nas já referidas experiências de 1855, constituído por sapato aberto com cordões, ao qual se junta polaina de couro fixa com fivelas, mas usando-se por debaixo da calça. Continuamos aqui a levantar dúvidas quanto à utilidade deste processo de uso da nova polaina.
As calças, em geral, seriam feitas num novo padrão de mescla, que teria sido distribuído em pequenas amostras acompanhando os planos destinados às unidades militares. Dando crédito às aguarelas do Coronel Ribeiro Arthur, que ilustram os militares saídos do plano de 1856, a mescla das calças seria consideravelmente mais clara do que a usada a partir de 1848. Para o Verão, integrada no pequeno uniforme, é claramente citada a calça branca de brim, que não havia sido referida em 1834 e 1848.
As barretinas mantêm-se no padrão de 1848, mas as antigas chapas de estrela com coroa real e designação regimental são substituídas por novos modelos que consistiam num troféu de armas à volta do escudo real português (O.E. nº 16 de 2/4/1856, decreto de 10 de Março).
Uma das inovações mais importantes e que reflecte claramente a adopção de figurinos estrangeiros surge nos regimentos de caçadores a cavalo. Estes, conforme o artigo correspondente na Ordem do Exército nº 22, de 6 de Maio de 1856, passam a usar jaqueta cor de saragoça, tal como os caçadores de infantaria. Neste caso, este tipo de regimentos passa a apresentar uma aparência profundamente afrancesada, similar às unidades de hussardos do período de Napoleão III.
No plano de 1856 surgiu um item muito interessante e inovador quanto ao nível de informação dado em planos de uniformes anteriores, tratando-se de uma descrição pormenorizada dos pertences que constituíam a dotação individual do soldado:
· uma barretina com capa de oleado (modelo de 1848)
· um penacho
· cordões para a barretina
· um casaco (grande uniforme)
· uma gravata (grande uniforme)
· um par de calças de saragoça (grande uniforme)
· dois pares de calças de brim (pequeno uniforme)
· um barrete de “polícia” (modelo de 1852, para pequeno uniforme)
· uma jaqueta de “polícia” (pequeno uniforme)
· três camisas (uso geral)
· dois pares de sapatos (uso geral)
· um par de polainas (grande uniforme)
· um capote (uso geral)
· uma escova de fato
· uma escova de botas
· um espelho circular, protegido por caixa metálica com 8 cm de diâmetro
· uma navalha de barba
· um pente fino
· uma tesoura pequena
· um “agulheiro de páo” com agulhas
· um pequeno saco de “panninho” com linhas e botões
· uma faca sem ponta com 17 cm de comprimento (Rancho)
· um garfo de 17 cm de comprimento (Rancho)
· uma colher de 17 cm de comprimento (Rancho)
· uma caixa de graxa para calçado
· uma caixa com graxa de cera preta e pomada para o armamento
Como podemos verificar são distribuídos vinte e seis artigos que constituem o vestuário regulamentar e respectivos acessórios de atavio e de higiene. É patente a intenção de racionalizar e disciplinar a dotação individual do militar e o uso que o próprio lhe poderá dar. Podem-se encontrar aqui conceitos essenciais, que dizem respeito à disciplina do uniforme e da aparência e um reflexo do reinado breve, mas esclarecido, de D. Pedro V. O fardamento devia identificar o portador como personagem social e gerar uma melhor e elitizada imagem perante a sociedade.
Às amplas reestruturações de 1856 não é estranha a acção do jovem rei D. Pedro V, que desde cedo demonstrou grande interesse e lucidez de ideias quanto à necessidade da existência de um exército eficaz e bem armado, o que pode ser verificado através da leitura da obra “D. Pedro V e os assuntos militares”, tese de doutoramento do Doutor Fortunato Queirós, publicada pela FLUP em 1972.
O plano de uniformes de 1856 foi o primeiro passo da adopção do figurino francês, assim como uma real actualização da estrutura uniformológica do Exército Português, colocando-o mais de acordo com a sua época.
Um ano antes do plano de 1856 já se havia levado a cabo a experimentação dos novos fardamentos, onde sobressaía o casaco. Passava-se a usar uma peça actualizada, cuja adopção tardia coincidia com a situação similar do exército britânico, que usava casaco ou túnica desde 1855. Tal justificava um processo de evolução paritário, em que a Inglaterra se adiantava a Portugal numa pequena margem cronológica, e ambos se distanciavam de outras potências europeias de dez a vinte anos, isto apesar de o Exército Português se ter afastado dos estilos britânicos.
Em termos específicos, o plano de 1856 trouxe de novo o casaco para todos os graus hierárquicos e para a maioria dos corpos do Exército, à excepção dos caçadores a cavalo que iriam estrear uma nova jaqueta. Esta, profusamente decorada com alamares e brandbourgs, era confeccionada em saragoça, à semelhança dos caçadores de infantaria. A nova jaqueta vinha aproximar os seis regimentos de caçadores a cavalo de um estilo declaradamente gaulês, ao estilo dos chasseurs à cheval ou dos hussards do exército de Napoleão III, acentuando um certo carácter de elite da cavalaria ligeira, juntamente com os dois regimentos de lanceiros.
O capote passou a generalizar-se como vestuário de Inverno de todos os postos hierárquicos do Exército, substituindo a antiga sobrecasaca e o efémero “sobre-tudo” de 1852.
Prenunciando os fardamentos exclusivos para as faxinas e trabalhos de caserna (não excluindo exercícios de manobra), surgiu a jaqueta de brim branco que, no entanto, teve uma existência atribulada, devido às críticas que a caracterizavam como mal adaptada e incómoda para aquelas funções, acabando por ser temporariamente suprimida para voltar a ser mencionada no plano de 1885, secundando a jaqueta de pequeno uniforme em panos azul ferrete ou cor de pinhão.
Manteve-se o bivaque do modelo de 1852 e o boné de pala de 1848 para o corpo de oficiais, à excepção do modelo à austríaca destinado aos oficiais superiores.
O calçado, peça essencial do uniforme militar, seria igualmente reformulado, deixando de se usar os modelos de 1834 (sapato abotinado) para se introduzir um sapato convencional com atacadores, secundado por polainas também de atacadores mas que se usavam sob o cano das calças. Esta foi uma medida deveras criticada na Revista Militar, pois (apontando para o exemplo francês que sobrepunha a polaina à calça, à excepção do uniforme de passeio e nos serviços internos), a polaina não cumpria, assim, a sua função protectora, tanto da perna como da calça. De facto, torna-se discutível o uso da polaina, tal como decretado no plano de 1856, devido à indefinição das comissões legislativas quanto ao uso deste artigo.
Quando foi publicado o plano de 1856, os equipamentos e acessórios das tropas, especialmente apeadas, haviam sido renovados em 1855, com a aquisição à Bélgica e à Inglaterra de novas mochilas, e com a introdução de novos cinturões que serviam de suporte simultâneo à patrona, bolsa de fulminantes e conjunto da baioneta.
Neste plano de uniformes, impôs-se um prazo de seis meses, a partir de 1 de Março de 1856, para que fosse rigorosamente cumprido o plano de fardamentos decretados nas Ordens do Exército nº 11 e nº 17. Isto significava que os legisladores e comandos do Exército queriam evitar os habituais atrasos na implementação dos novos uniformes, evitando situações como as criadas a partir do plano de 1848, onde se arrastaram as modificações, as alterações e as ampliações, verificadas em 1850, 1851 e 1852.
Apesar do incipiente experimentalismo levado a cabo para a elaboração do plano de 1856, com a consequente tentativa de racionalização dos fardamentos e dotações individuais das tropas, o exemplo da jaqueta, e mais tarde de quase todo o contexto uniformológico de 1856, vai demonstrar que as nomeações de responsáveis para a elaboração de planos de uniformes continuavam a deixar de lado militares com a devida noção do equilíbrio entre a aparência, a ergonomia, a higiene e a resistência, que começavam a ser características vulgares em qualquer exército europeu da segunda metade do século XIX. Tal não significava que no Exército Português da época não existissem, sobretudo, oficiais com a percepção do conceito acima referido. Deles partiam as críticas, que graças aos conhecimentos e à cultura obtidos a partir do que de melhor se fazia na Europa, e mesmo pelo uso do simples bom-senso, eram extremamente válidas, sobretudo quando publicadas. O púlpito preferencial para veicular essas críticas, a Revista Militar, deixou-nos testemunhos comprovativos de que, apesar das dificuldades e das indecisões eternas que caracterizavam o funcionamento do exército português do século XIX, existiam militares lúcidos e cultos, curiosamente das patentes inferiores a major, indicando uma nova geração de oficiais e posteriormente sargentos, que irão protagonizar os papéis críticos da viragem do século XIX para os inícios do século XX.
Ainda em 1858, um frequente articulista da Revista Militar, Cunha Vianna, do qual não sabemos a patente nem a unidade, estabeleceu um bem estruturado raciocínio sobre a questão da concepção dos uniformes militares, no caso, portugueses, e que se insere na linha de pensamento deste trabalho.
Assim, Cunha Vianna afirmava que, em relação aos planos ou às deliberações sobre uniformes do Exército Português, estes eram subordinados a um figurino, que era sobretudo copiado de modelos estrangeiros, como por exemplo as barretinas: a de 1834, influenciada pelo desenho prussiano e inglês pós-1815, a de 1848 pelo figurino francês, ou então os bonés de caserna, do género “tachinho” (Pires, 1935, folha nº 137) cuja influência é nitidamente inglesa, para em 1852 se adoptar um boné tipo bivaque, baseado no barrete à la dragonne do exército francês e em modelos similares do exército espanhol. Dez anos mais tarde, o Exército Português adopta a cópia quase perfeita do képi-barretina francês, modelo de 1860, sobrepondo-se os ditames da moda militar europeia, cujas realidades diferiam de país para país, às necessidades e comodidades dos militares que o deveriam usar. Ficava posta de lado a articulação de um sistema útil em campanha com os caracteres económicos de um exército, que não queria sacrificar o aparato, mais apropriado à paz do que aos novos tipos de guerra da segunda metade do século XIX.
O procurado equilíbrio de factores que o autor do artigo enunciava, e que não via realizado no Exército Português, resumia-o a três pontos ou condições.
A primeira condição faz adaptar o plano de uniformes à primazia dos rigores do serviço de campanha, o mais desgastante para as tropas, independentemente do clima ou das condições do terreno. Era necessária flexibilidade para que os fardamentos se adaptassem a tais condições, implicando a conjugação da protecção com a leveza.
A segunda condição articula-se com a primeira, porque o factor económico relacionar-se-ia com a exigência de um sistema (“trem” no original) de armas o mais ligeiro possível, como condição essencial para a mobilidade, tendo em conta o país ou zona onde se realiza a campanha. Cunha Vianna vaticinava, sem o saber, a série de campanhas coloniais a que o Exército Português teve de acorrer por diversas circunstâncias e aonde se pôs realmente à prova o cruzamento entre o pragmatismo e as exigências do terreno, como por exemplo nas campanhas na Índia em 1871, em Angola em 1873, e a pacificação de Moçambique a partir de 1894.
A terceira condição, que marca o equilíbrio, baseava-se no necessário aparato marcial do Exército, como imagem do Estado e do Reino. Independentemente do gosto ou do figurino, era uma posição delicada, pois o excesso de aparato implicava a desarticulação com as duas primeiras situações, deixando o Exército de possuir a necessária operacionalidade. Essa operacionalidade, pilar fundamental da soberania nacional, deixaria de o ser para se tornar uma extensa guarda palaciana, versão alongada de um exército de conto de fadas, decorativo e inútil.
Qualquer tentativa de racionalizar os sistemas de fardamento do Exército Português, não devia pôr de parte a análise dos figurinos estrangeiros, mas como Cunha Vianna teorizava, era uma necessidade, sobretudo com realidades próximas da nossa. Contudo, escrevia o autor: “mas esse trabalho deve tomar o carácter de estudo, para delle se tirar as convenientes applicações, e não sacrificar a reflexão à authoridade, muitas vezes experimental, de um qualquer systema, só porque é seguido por aqueles a quem cedemos o glorioso título de nação guerreira (…)” (Revista Militar, 1858, p. 384).
Os uniformes introduzidos pelo plano de 1856, apesar das muitas modificações que comportaram, começaram a mostrar deficiências, tanto no planeamento como na aplicação e qualidade dos materiais.
Desde 1858 que não eram decretadas quaisquer determinações relativas aos uniformes de 1856, parecendo que o processo de implementação decorria sem percalços. Mas em 1860 essa questão volta a ser abordada na Revista Militar, de maneira mais específica e pragmática do que Cunha Vianna o havia feito dois anos antes. A abordagem é incisiva e generalizada, mas não se desliga dos princípios básicos enunciados por Cunha Vianna. O autor, o capitão Luiz Augusto Pimentel, do Regimento de Infantaria nº 17, começou por afirmar, sem qualquer rodeio, que os uniformes de infantaria (os de 1856) não eram elegantes, nem tão pouco cómodos. Com a supressão das antigas fardas de abas, teria sido suposto aligeirar a pesada massa de fardamento e equipamento que o infante português devia transportar, tornando-o vulnerável à fadiga e ao desgaste provocado pelas marchas forçadas de longo curso e mesmo, segundo o autor, para marchas de rotina curtas.
A má gestão das dotações individuais de fardamento, assim como a falta de disciplina de uso, continuava em 1860 a provocar o excesso de carga que o soldado deveria transportar em campanha, o que infere que não deixaria quaisquer dos seus pertences no quartel ou unidade. Aquele excesso de material acabava também por onerar os pequenos recursos financeiros do soldado.
É pertinente referir o que o capitão Luiz A. Pimentel sugeria como alternativa ao estado geral dos fardamentos das tropas. Ele propunha a abolição do capote, sendo a função acumulada pelo casaco que, redesenhado, seria largo, “airoso”, com forros, chumaços e a gola aberta. Para proteger a cabeça e os ombros da chuva, existiria um capuz amplo, adaptável ao casaco por meio de botões, sendo suficientemente largo para cobrir a cabeça e a barretina, secundado por um cabeção para os ombros. O casaco, usado sobre a camisa durante o Verão, era reforçado por um colete forrado durante o Inverno.
Em grande uniforme, o casaco (sem o capuz) ornar-se-ia com dragonas de franja comprida, à francesa, com os distintivos das especialidades e da Arma.
Antecipando-se em pensamento ao que viria a ser determinado em 1868, o articulista advogava um novo modelo de barretina mais baixa, o que sem dúvida apontava o modelo francês, não o képi, mas uma versão rígida deste, com penacho de crina pendente.
Ainda dentro da influência francesa, o capitão Pimentel pretendia que a polaina apertasse sobre a calça, pelo menos nas marchas. Só nas faxinas e serviço de quartel o soldado usaria a jaqueta em brim cru, o mesmo material das calças de pequeno uniforme.
Com tudo isto pretendia-se que o soldado fosse unicamente dotado para determinado espaço de tempo (dois anos e meio) com um casaco, uma calça de pano, um colete e uma jaqueta de brim, o suficiente para ser acondicionado na mochila e acessórios, não referindo o autor as calças de brim para complementar a jaqueta.
Não fundamentando as suas ideias em factores de natureza estética, o autor defende as suas sugestões argumentando com a questão da operacionalidade e prontidão do soldado para o combate: “Em tempo de guerra que nos tem mostrado a experiencia? Que nem nas marchas, nem nos bivaques na proximidade do inimigo, nem nos postos avançados, se permitte ao soldado desenrolar o capote, porque a muxilla fica por tal forma desordenada, pelo desconcerto da correia de atravessar, da marmita, malote e franqueletes, etc. que se for necessario pegar em armas subitamente, a tropa ver-se-ia em grande confusão. E poderia perder todo o equipamento, ou despender um tempo precioso, cujo desperdicio lhe poderia ser muito funesto.” (Revista Militar, Lisboa, 1860, p. 592).
Ainda no texto que analisámos, é referido um costume relacionado com a higiene do soldado e também com a sua capacidade económica. Pimentel critica o costume (em 1860) de ser permitido ao soldado mandar a roupa a lavar fora, apartando-se dessa tarefa, mesmo que tal lhe dizimasse o soldo, especialmente se acumulasse grandes quantidades de fardamento para a lavagem (idem, p. 592 - 593). Na verdade, a obrigação do soldado de cuidar e lavar a sua própria roupa seria benéfica em termos de auto disciplina e da preservação de hábitos higiénicos, com óbvio reflexo na aparência e imagem do colectivo.
A questão sobre a qualidade e ergonomia dos fardamentos deixava transparecer várias realidades sobre a imposição de legislações sobre uniformes no Exército Português na época da Regeneração. A verdade das casernas sobrepunha-se ao texto oficial dos decretos, pela mão de oficiais maioritariamente de patentes subalternas, que acompanhavam de perto a vida e o quotidiano das suas tropas.
Ficaram testemunhos que atestam a lucidez e cultura de muitos oficiais, no meio de estruturas instáveis e das dificuldades que caracterizavam as forças armadas naquela época, sintoma da existência de uma nova geração de oficiais que irão protagonizar as viragens políticas no início do século XX.
Pese o experimentalismo inédito que precedeu o plano de uniformes de 1856 e a sua tentativa de racionalização dos sistemas uniformológicos e a actualização dos figurinos, os anos seguintes vão demonstrar que as comissões formadas para a elaboração de planos e decretos sobre uniformes dificilmente conseguiam conciliar noções de equilíbrio entre a aparência e a ergonomia, a higiene e a resistência dos materiais, características vulgares em outros exércitos da mesma época. As críticas e as opiniões condenavam e demonstravam a falta de estudo e reflexão sobre a matéria, sobrepondo-se a autoridade das patentes e a cega adopção dos sistemas estrangeiros, pela mera razão de se encontrarem na moda e por advirem de potências militares com domínio geoestratégico, como o foram a França ou a Prússia.
Na verdade, o soldado português continuou a ser dotado com fardamentos pesados, incómodos e de má qualidade, agravando uma já difícil existência, substanciada em quartéis com estruturas deficientes e situados alguns em zonas inóspitas de fraca comunicabilidade. Aliadas a estas circunstâncias, continuavam-se a verificar graves lacunas disciplinares quanto ao uso do uniforme e dos hábitos individuais no campo sanitário.«

Continua

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